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20081022

Neste final de mais um dia (aqui)...



A mão esquerda e a mão direita são talvez uma só

quando se corta a água em pedaços ou quando, acima do vazio,

tudo permanece inalterável.

Nos caminhos da música movem-se as sombras daquilo que se busca,

o que vive impassível entre o claro e o escuro,

entre o que se diz e o que se escuta,

entre o limite e a plenitude. Como

poderei explicar-me sem palavras,

como podem as palavras explicar-te?

A minha mão esquerda e a tua mão direita

são talvez uma só quando as envolve a ligadura da água

ou quando, injustamente, esquecemos toda

a inquietação.

Joaquim Pessoa
in À Mesa do Amor

Imagem(C)NamJunePaik
Studio Azzurro Immagini
Vive Electa 2005

20080408

Q.


Disse Kabir: Sobre esta árvore está um pássaro.

Dança com a alegria da vida. Ninguém sabe onde está.

E quem poderá saber qual o tema do seu canto?

Tem o ninho onde os ramos fazem a sombra

mais profunda; chega ao anoitecer e parte, voando,

pela manhã, sem ter dito uma palavra

do que queria contar.

Ninguém me fala deste pássaro que canta dentro de mim.

Não tem cor nem, sequer, é incolor. Não tem forma

nem silhueta.

Descansa à sombra do amor.

Mora no inalcançavel, no infinito e no eterno

e ninguém repara quando chega ou parte.


Profundo é o mistério. Que os sábios procurem descobrir

onde descansa este pássaro.


Joaquim Pessoa
in À Mesa do Amor
Imagem(C)Giclee Print

20080326

Construí uma casa no mar...


Construí uma casa no mar.

Com portal para o vento e um terraço onde escuto o grito do albatroz

ou recolho o pólen das estrelas.

Plantei nas ondas uma árvore. São peixes

as pequeníssimas folhas desta árvore

que sinto crescer como um amigo.

Todos os móveis da casa são de água. Densa,

vermelha, filha de um vulcão,

ou leve, clara, irmã do linho.

Os tapetes têm a cor de antigos versos que elogiam o mar.

Canções, odes, barcarolas. De um tempo

em que o sol emprenhava as corças numa cama de folhas

e onde agora é deserto.

Nesta casa de água, escrevo. E, para o teu poema,

lanço a minha rede. Nela vêm, doirados, ofegantes, vivos,

os cardumes de sílabas.


Joaquim Pessoa
in À Mesa do Amor
Imagem de Google Images

20080323

andando no dia...


[...]

As tuas pálpebras enxugam o ouro, folheiam

a amizade.Tomas-te a ti mesmo em movimentos obscuros,

prodigiosos, vês com a memória o púcaro de água no deserto.

Abres também tu a porta do maior dos rios, és uma criança que bebe

a extraordinária transparência dos cometas.

Vogas, como essa palavra que guardas diluída na água.

O rio está em ti.

[...]


Joaquim Pessoa
in Nomes
Imagem(C) Williwm Barnes

20080117

RECADO...COM PALAVRAS!!!!!


Palavras que não morrem. Nunca morrem

se um homem as disser sempre de frente.

Palavras que não morrem.Nunca morrem

porque são a razão de quem as sente.


Palavras. Todas elas do meu povo.

Amigas. Companheiras.Namoradas.

E são o canto antigo. O canto novo

de quem não as quer ver amordaçadas.


Palavras que são vento. E tempestade.

Palavras que são sol. E são abrigo.

Verdade. Amor. Poema.Liberdade.


Palavras que são arcos. E são setas.

Com elas se defende uma canção.

As palavras são as armas que os poetas

devem fazer passar de mão em mão.


Camões lutou com elas. E por elas.

Junqueiro perfilou-as. E Cesário

abriu todas as portas e janelas

e veio à rua escrever como um operário.


As palavras do sangue. Essas palavras

que são a tua foice. O meu poema.

Palavras de suor quando tu lavras.

De alegria se escrevo e vale a pena.


Palavras que te dizem: estou aqui.

Palavras que me doem. E que eu canto.

Palavras com raíz no meu país

e que já doeram. Mas não tanto.


Palavras que não gosto de dizê-las

assim feridas. E tu amor não digas!

Palavras encarnadas. Estou a vê-las

em Maio que é o mês das raparigas.


São palavras de fogo. Mas não ardem.

Palavras simples. Do meu cantar de agora.

São palavras. Amigas que não partem.

E ficando resistem à demora.


Palavras que não morrem. Nunca morrem,

E são a minha voz. A minha gente.

Palavras que não morrem. Nunca morrem

se um homem as disser sempre de frente.


Joaquim Pessoa,
As palavras do meu canto
Imagem(C) Stephanie Poulin

20071228

novo dia...




As estrelas permanecem quando a noite se muda.

Outras estrelas abastecem o fulgor das noites

que se tornam o verso destes dias. A boca carrega

sílabas de ouro, íntimo ouro que a língua retira

das palavras. No mar que contemplamos nunca existe

o mesmo mar. Nele vivem infinitas formas, infinitas faces.

É outro. O mesmo outro. De uma água

que se esgota na memória. E em nós correm os dias,

as noites, as estrelas. Para aprendermos os gestos

da água e do ouro.


Joaquim Pessoa
in À Mesa do Amor
Imagem(C) C. Vacher

20070807

22


Construí uma casa no mar.

Com portal para o vento e um terraço onde escuto o grito do albatroz.

ou recolho o polén das estrelas.

Plantei nas ondas uma árvore. São peixes

as pequeníssimas folhas desta árvore

que sinto crescer como um amigo.

Todos os móveis da casa são de água. Densa,

vermelha, filha de um vulcão,

ou leve, clara, irmã do linho.

Os tapetes têm a cor de antigos versos que elogiam o mar.

Canções, odes, barcarolas. De um tempo

em que o sol emprenhava as corças numa cama de folhas

e onde agora é deserto.

Nesta casa de água, escrevo. E, para o teu poema,

lanço a minha rede. Nela vêm, doirados, ofegantes, vivos,

os cardumes de sílabas.


Joaquim Pessoa, À Mesa do Amor

20070725

28


Disse Kabir: Sobre esta árvore está um pássaro.

Dança com a alegria da vida. Ninguém sabe onde está.

E quem poderá saber qual o tema do seu canto?

Tem o ninho onde os ramos fazem sombra

mais profunda; chega ao anoitecer e parte, voando,

pela manhã, sem ter dito uma palavra

do que queria contar.

Ninguém me fala deste pássaro que canta dentro de mim.

Não tem cor nem, sequer, é incolor. Não tem forma

nem silhueta.

Descansa à sombra do amor.

Mora no inalcançavel, no infinito e no eterno

e ninguém repara quando chega ou parte.


Profundo é o mistério. Que os sábios procurem descobrir

onde descansa este pássaro.


Joaquim Pessoa, À Mesa do Amor
Imagem (C) Alexander Lyamkin

20070724

13


Como Händel escutas a música da água

para possuí-la. É tua por um instante de suprema claridade.

Ofereces essa música ao poema, reconheces a água

como ventre de todas as palavras.

No teu pulso não há gritos, apenas o brilho

e a jura das abelhas.Recados para o sol.

As tuas mãos entram devagar sob a cascata de sons,

elevas o silêncio à boca cristalina

onde a pomba reconhece as sementes do céu.

São frutos da água os pomos de oiro, as pequenas palavras.

São risos de enseada. Partitura

para a inacabada sinfonia da árvore, obra

maior, primeiro movimento.

Joaquim Pessoa, À Mesa do Amor
Imagem (C) JT Winick

20070713

O NOME


Por uma manhã além do nunca

passaram as corças rente ao mar

para ouvir a voz de Deus. Sabiam

não mais que a dor de não saber

a origem da luz, a origem do pó, a origem do fogo.

Depois das corças , depois da vertigem,

vieram as pombas, os chacais e o vento do deserto

e com eles a queixa solar dos laranjais.

E chegou o sul. E chegou o sempre.

E sempre que chegava alguma coisa, alguma luz,

acontecia um tempo e outro tempo

no tempo que houve a haver. E houve vento.

E o vento empurou o que há-de vir

cobrindo-o de espera e de esperança.

E foi-se o vento. E ficou o sempre
para sempre. E o sopro. E a semente.

E o som que vem sem fúria. Docemente.

O nome incandescente da ternura.

O nome. Simplesmente.


Joaquim Pessoa, Nomes
Imagem (C) DOUGALL