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20080704

Presente




Queria neste poema a cor dos teus olhos

e queria em cada verso o som da tua voz:

depois, queria que o poema tivesse a forma

do teu corpo, e que ao contar cada sílaba

os meus dedos encontrassem os teus,

fazendo a soma que acaba no amor.



Queria juntar as palavras como os corpos

se juntam, e obedecer à única sintaxe

que dá um sentido à vida; depois,

repetiria todas as palavras que juntei

até perderem o sentido, nesse confuso

murmúrio em que termina o amor.




E queria que a cor dos teus olhos e o som

da tua voz saíssem dos meus versos,

dando-me a forma do teu corpo; depois,

dir-te-ia que já não é preciso contar

as sílabas, nem repetir as palavras do poema,

para saber o significado do amor.




Então dar-te-ia o poema de onde saíste,

como a caixa vazia da memória, e levar-te-ia

pela mão, contando os passos do amor.




Nuno Júdice
in O Estado dos Campos

Imagem (C) Google Images

20080617

As palavras dos poetas...


Nuno Júdice,
Cantiga in A Matéria do Poema

20080516

Noite e Dia


E então a noite caiu, para que não se falasse

do cair da noite. a noite caiu tão fria como as

últimas noites que caíram, neste principio de

Inverno, e ninguém pôs um colchão por baixo

dela para que a noite não se magoasse, ao cair.

A noite limitou-se a cair, e com ela caiu o céu

sem lua, com todas as estrelas do uiverso a

caírem com ela. Só os olhos não caíram, porque

para verem o céu e as estrelas que o enchiam

tiveram de se levantar. e foi preciso falar

do cair da noite para que os olhos tomassem

a direcção do céu, e descobrissem tudo o que

havia no céu sem lua. " Deixem cair a noite",

disse alguém. e logo alguém pediu que o

dia se levantasse, como se uma coisa estivesse

ligada à outra. Então, o dia levantou-se da

noite que caiu; e a noite caiu sobre o dia

que se levantava, para que a sua queda fosse

amparada pelo colchão do dia, e as estrelas

tivessem onde pousar, à medida que caíam.


Nuno Júdice
in As Coisas Mais Simples
Imagem (C) Ben Goossens

20080422

Eu queria...


Eu queria olhar os pássaros

pelas proposições de ruy belo: vê-los

nos galhos das árvores, como frutos

de verão: E queria colhê-los,

como se cada asa fosse um verso,

para fazer este poema voar

"com uma referência ao coração".

[...]


Nuno Júdice
in Geometria Variável
Imagem (C) Google Images

20080415

Verbo


Ponho palavras em cima da mesa; e deixo

que se sirvam delas, que as partam em fatias,sílaba a

sílaba, para as levarem à boca - onde as palavras se

voltam a colar, para caírem sobre a mesa.


Assim, conversamos uns com os outros. Trocamos

palavras; e roubamos outras palavras, quando não

as temos; e damos palavras, quando sabemos que estão

a mais. Em todas as conversas sobram as palavras.


Mas há as palavras que ficam sobre a mesa, quando

nos vamos embora. Ficam frias, com a noite; se uma janela

se abre, o vento sopra-as para o chão. No dia seguinte,

a mulher a dias há-de varrê-las para o lixo.


Por isso, quando me vou embora, verifico se ficaram

palavras sobre a mesa; e meto-as no bolso, sem ninguém

dar por isso. depois guardo-as na gaveta do poema. Algum

dia, estas palavras hão-de servir para alguma coisa.


Nuno Júdice
in As coisas mais simples
Imagem (C) Google Images

20080320

Como se fosse um desejo...


[...]

Do verde, nasceu a erva que circunda um leito

de rio onde estagnou a água da primavera; do azul,

soltam-se os olhos que lembro quando o

horizonte os tinge de cinzento;do amarelo, as folhas

da árvore que um desejo de chuva mancha com o

seu veio castanho.Oh! Se alguém pudesse habitar

estas cores, tocar a sua matéria de esquecimento,

respirar a sua atmosfera ferida pela seta de

um caçador de acaso! Invejo a sorte de quem

não conta o tempo pela areia espessa dos instantes,

e pousa no coração dos dias como a ave

colorida.

[...]


Nuno Júdice
in As coisas mais simples
Imagem(C) Barbara Mathews,
May 14 2005

20080207

Memória


[...]


Deixei-te no meio da sala,

por entre as cortinas de resignação

e sonho. Ninguém as puxou por nós; e

continuo sem saber se ainda ali estás,

ouvindo os pássaros que cantam no quintal,

anunciando a noite que

não cai.


Nuno Júdice
in Geometria Variável
Pintura (C) Diego Rivera

20080127

O Amor é


[...]


esperar-te em cada instante

em que sei que me esperas,

dar-te a alegria que me dás,

ver-te chegar num eco de ave,

e deixar que me prendas

com o teu gesto mais suave,

sentir-te, só, ao pé de mim,

e sentir-me tão só longe de ti

[...]


Nuno Júdice,
Geometria Variável
Imagem (C) Jose Royo

20080119

A Amiga Brancamar pediu...


Certas manhãs trazem uma luz diferente.

Um ar de primavera, um pássaro que entrou

por uma fresta do telhado, e anda às

voltas na escada, uma voz que se ouve, num eco,

e não se sabe o que diz. A manhã irá passar,

como todas as manhãs que nasceram,

trazendo uma luz diferente; mas a primavera

que ela anuncia colou-se ao rosto com quem

nos cruzamos; o canto do pássaro meteu-se

na cabeça, como se ele voasse por dentro

da memória; e o eco que ouvi ganhou

uma voz na tua boca, quando te encontrei

e me disseste que havia uma luz diferente,

nesta manhã em que tudo parecia igual.


Nuno Júdice,
As coisas mais simples
Imagem(C) Richard Kinsey

20080118

Construções


Prendo-me a uma coisa simples. Pode

ser o teu rosto naquele vidro que eu vi

e não mais esqueci.


Faço do tempo um parapeito. E

debruço-me nele, à tua espera, sentindo

na madeira o calor do teu peito


Ergo na areia um castelo de enigmas. E

fecho-te na sua torre, a castelã que me ensinou

a entrar sem saber por onde sair.


( Mas para que hei-de sair

de onde quero ficar?)


Nuno Júdice,
Geometria Variável
Imagem(C) maria batagglia