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20080615

Destino




Começa um rio numa gota de água.

O sonho é que avoluma o corpo da nascente.

Fonte:

Tão delicada, e hás-de ser torrente

A saltar fragas e a rasgar o monte.


Miguel Torga
in Poesia Completa
Imagem (C) Rebecca Hardin

20080405

Instrução Primária


Não saibas: imagina...

Deixa falar o mestre, e devaneia...

A velhice é que sabe, e apenas sabe

Que o mar não cabe

Na poça que a inocência abre na areia.


Sonha!

Inventa um alfabeto

De ilusões...

Um a-bê-cê secreto

Que soletres à margem das lições...


Voa pela janela

De encontro a qualquer sol que te sorria!

Asas? Não são precisas:

Vais ao colo das brisas,

Aias da fantasia...


Miguel Torga
in Diário IX
Imagem(C) Odilon Redon

20080209

nas horas da noite...


Bato à porta da minha solidão,

E ninguém abre!

Na grande noite que me rodeou,

Quem vinha ao meu encontro, desviou

A direcção fraterna da ternura...


[...]


Miguel Torga
in Poesia Completa
Imagem (C) Percy Silva

Sonho Perdido


Como foi que o meu sonho se perdeu

No liso descampado desta vida?

Distraída

Atenção

Que tão ingloriamente empobreceu

Quem não tinha outro vinho e outro pão!


Na fundura dos bolsos não encontro

Nem sequer a lembrança desenhada

Do seu calor!

Perdi o sonho...E resta-me o pudor

Deste triste poema ressequido...

Perdi o sonho... E nunca se encontrou

Nenhum sonho perdido.


Miguel Torga
in Poesia Completa
Imagem retirada de Google Images

20080108

pela manhã...


O arauto de Apolo dorme ainda

Na quentura do ninho.

Corvo marinho,

Cotovia,

Ou sonha na salgada penedia,

Ou no campo maninho.


Mas não dorme o Poeta.

E a sua natural inspiração

Voa através da escuridão

E vai buscar a luz à sua fonte.

Salta de monte em monte,

Com pernas de gigante e de ladrão.


E nas trevas humanas,

Nas pálpebras teimosas da rotina,

O seu poder de mago e de vidente

Cria

O novo sol desse precoce dia

Com mais fulgor futuro que presente.


Miguel Torga
in Poesia Completa


Imagem(C) M. Chagall

20071216

Manhã de domingo...


Salta, discretamente, a página do amor

No Livro de Horas.

Não leias mal o que já leste bem.

Emocionado, choras

A cada passo

E tornas baço

O brilho que ela tem.


Deixa o texto arquivado na lembrança.

Passa adiante e cobre-o de pudor.

No jardim resta ainda tanta flor

Que podes desfolhar

Sem lágrimas na voz!...

Quem soube ter, sabe renunciar...

Há laudas de silêncio em todos nós.


Miguel Torga
Poesia Completa

20071111

Neste domingo de S.Martinho


Sonha a vinha podada.

Sonha calma, gelada,

Pâmpanos de primavera universal.

Sonha, numa recôndita modorra,


Uma aberta desforra

Em vides de tamanho natural.

Sonha como quem dorme repousado

Na certeza da seiva e da razão;


Sonha como quem sabe que o seu fado

Tem apenas as leis da ocasião.

Sonha contra as muralhas altas, ocas,


Que são nuvens de pé sobre o horizonte:

Porque o céu há-de abrir-se quando as bocas

Beberem mosto como numa fonte.


Miguel Torga,
"A Vinha Podada" in Poesia Completa
Imagem (C) anameloart.com

20071023

UM POEMA


Não tenhas medo , ouve:

É um poema.

Um misto de oração e feitiço...

Sem qualquer compromisso,

Ouve-o atentamente,

De coração lavado.

Poderás decorá-lo

E rezá-lo

Ao deitar,

Ao levantar,

Ou nas restantes horas de tristeza.

Na segura certeza

De que mal não te faz.

E pode acontecer que te dê paz...


Miguel Torga
in POESIA COMPLETA

20070918

Viagem


Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
o velho paraíso
Que perdemos).
Prestes larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a adia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga, Câmara Ardente

20070831

Musa Ausente


Falta a luz dos teus olhos na paisagem:

O oiro dos restolhos não fulgura,

Os caminhos tropeçam, á procura

Da recta claridade dos teus passos.

Os horizontes, baços,

Muram a tua ausência.

Sem transparência,

O mesmo rio que te reflectiu

Afoga, agora, o teu perfil perdido.

Por te não ver, a vida anoiteceu

À hora em que teria amanhecido...


Miguel Torga,
in Poesia Completa

20070730

Para o dia de hoje...


A vida é generosa, quando quer.

Se gosta de quem passa,

manda que o vento, lírico, estremeça

e lhe peneire pétalas nos ombros.



Cobre-os do amor que voa e que fecunda...



Semeados de rosas desfolhadas,

O coração do homem, fraga dura,

Transforma-se na terra das lavradas

Onde cresce ternura.


Miguel Torga,
in Poesia Completa